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POLÍCIA

Tigrinho que só perde: com vítimas em todo o Brasil, cassinos online podem ser crime

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O interesse veio depois de ouvir influenciadores digitais. Na época, eram tantos falando sobre um tal Jogo do Tigrinho que é até difícil apontar só um. Todos, sem exceção, compartilhavam grandes ganhos com essa plataforma e similares. Por curiosidade, a empresária Vitória Damaceno Bittencourt, 23 anos, começou a fazer apostas pequenas - algo como R$ 30, R$ 40.

Com o tempo, os valores foram aumentando. Via os famosos da internet postando que ganhavam muito dinheiro e se sentia estimulada a tentar. Em um dia, fez um depósito de R$ 80 e saiu com R$ 800. Até então, ela trabalhava o dia inteiro para ganhar R$ 150 como motorista por aplicativo. "O que era mais fácil? Na teoria, jogar. Mas o jogo te dá para te tomar depois. Quando você vê, está viciada e quer cada vez mais, enquanto o influenciador fica lá postando que está ganhando", diz ela.

Em seis meses, Vitória passou a ter uma dívida de R$ 160 mil no banco, entre empréstimos e perdas diretas para as plataformas de cassinos online. "O jogo não muda a vida de ninguém, só dos influenciadores. Se as pessoas estão achando que vai mudar a vida, não vai. Ele não vai fazer isso por você", acrescenta a empresária, que há duas semanas decidiu contar sua história no TikTok, como forma de alerta para outras pessoas. Um dos vídeos que viralizou tem mais de 990 mil visualizações.

O relato de Vitória encontra eco em outros casos recentes. Na semana passada, uma mulher de 22 anos foi presa no Paraná, suspeita de ter roubado R$ 179 mil da conta do avô para usar no jogo. Dias antes, uma enfermeira foi dada como desaparecida no interior de São Paulo por uma semana. Ela voltou, mas revelou à família que tinha fugido por conta das dívidas que contraiu com o cassino online.

Enquanto isso, influencers que divulgam jogos de cassinos online costumam ostentar luxos e viagens. Os valores para quem aceita essas "publis" - a publicidade feita por criadores de conteúdo - chegam a números exorbitantes. Em junho, a youtuber Patrícia Ramos, que tem cinco milhões de seguidores, revelou ter recebido uma proposta de um contrato de R$ 3 milhões por ano para divulgar apostas online.

"O que eu fico "p." da vida é que esses influenciadores que fazem essa parada ostentam uma vida de luxo extremamente cara. Compram mansão, carro, bolsa de marca, só coisa de luxo e bota lá "foi Deus que me deu, tenha fé que um dia vai chegar". Gente, não vai, tá? A gente está falando aqui de um dinheiro que as pessoas estão perdendo para eles ganharem", denunciou.

O esquema

O roteiro é sempre o mesmo. Um influenciador digital posta um vídeo seu - geralmente, nos stories do Instagram - em que está apostando em um joguinho de cassino online. "Plataforma nova, hein, gente, de R$ 10. Vamos ver quanto eu ganhei. R$ 97, com R$ 3 que joguei", dizia uma delas, nesta semana, para seus 3,4 milhões de seguidores. Na tela, um cassino online e um coelhinho colorido mostravam os ganhos.

O coelho é só um dos animais, mas está longe de ser o mais famoso. Há espaço ainda para touros e dragões, mas o representante mais famoso é o tigre. Daí a alcunha "Jogo do Tigrinho" - ou Fortune Tiger, em sua versão em inglês - que virou símbolo de uma miscelânea que envolve essas figuras midiáticas, redes sociais e uma nova leva de pessoas - cada vez mais jovens - ao vício em jogos de azar.

O que pode mudar o cenário, a partir de agora, é a constatação de que os cassinos do zoológico não seriam jogos de azar, na avaliação do delegado Charles Leão, titular da Delegacia de Repressão a Crimes de Estelionato por Meio Eletrônico (DreofCiber). Jogos de azar não são crime no Brasil - por outro lado, são considerados contravenção penal, infrações mais leves cuja pena é de três meses a um ano de detenção.

"Esse jogo não está baseado em azar ou sorte, para ser contravenção. Isso é meramente um artifício ardil criado para capturar vítimas. Esses supostos influenciadores mostram que estão ganhando isso aí, mas eles não estão. Não é jogo de azar porque você já entra para perder. Você não conta com a aleatoriedade", explica Leão.

Se alguém joga uma moeda para cima, não há como prever o resultado - portanto, é possível ter sorte ou azar. No Jogo do Tigrinho e similares, de acordo com o delegado, o que existem são crimes de estelionato e lavagem de dinheiro envolvidos. Enquanto o primeiro tem pena de quatro a oito anos de prisão, o segundo pode chegar a 10 anos.

"Os influenciadores podem ser inseridos dentro desse emaranhado, dentro do delito de associação criminosa. Porque alguns deles até simulam estarem ganhando. Isto é, eles participariam de um teatro. A meu ver, eles podem ser trazidos para a área criminal, por associação criminosa", pontua. A pena por associação é de um a três anos de reclusão.

Não é incomum, ao entrar nos sites dessas plataformas, se deparar com a informação de que o jogo não está hospedado no Brasil. Contudo, isso não mudaria nada, de acordo com Leão. "O site pode estar em qualquer lugar do mundo, mas a vítima sofreu o prejuízo no Brasil", reforça.

Até o momento, nenhuma vítima registrou boletim de ocorrência na DreofCiber, por isso, não há investigações em andamento aqui. Um eventual ressarcimento pelo dinheiro perdido nos golpes, porém, teria que ser solicitado através de um processo cível. No aspecto criminal, é possível também acionar as instituições bancárias envolvidas.

"O delegado de polícia pode pedir o bloqueio e o sequestro de ativos e de valores, que estão dentro do sistema bancário nacional. A instituição bancária pode ser trazida: esse dinheiro está sendo mandado para a conta de quem? Essa pessoa é brasileira e só tem conta fora do país?", exemplifica.

Apesar de um nome só - "Jogo do Tigrinho" -, as plataformas são diversas. Especialistas já identificaram ao menos 100 sites diferentes, mas esse número pode ser muito maior. Por isso, é difícil apontar quem está por trás desses grupos. "São várias associações criminosas no Brasil todo, enganando as pessoas e fazendo com que as pessoas se endividem, peguem empréstimo em banco, adiantamento de salário. Redes sociais, pix e jogo é uma mistura que não dá certo", enfatiza Leão.

Pirâmide

A reportagem conversou com uma influenciadora baiana que contou ter recebido propostas para ganhar entre R$ 10 mil e R$ 15 mil por mês pela divulgação de jogos de cassino online. Com cerca de 70 mil seguidores, ela não aceitou. Meses antes, tinha tido sua própria experiência enquanto apostadora, depois que uma colega influencer começou a fazer a divulgação.

Jogou R$ 50 e, em 10 minutos, tinha feito R$ 1,5 mil. "Nessa ânsia, você pensa: "posso conseguir R$ 3 mil, posso conseguir R$ 5 mil. E aí você não sabe exatamente a hora de parar", diz ela, que perdeu tudo que ganhou na sequência.

Dali em diante, decidiu não mais apostar. Meses depois, vieram as primeiras reportagens sobre o tema e as pessoas falando sobre os perigos dos jogos de azar. "Hoje em dia, eu sei que é como uma espécie de esquema de pirâmide, que tem uma pessoa que é como gerente e vai pegando outras pessoas que ganham comissão. Essas plataformas também fazem isso. Elas têm representantes que vão captando influenciadores".

Essa semelhança com as pirâmides financeiras tem a ver com outra figura, além dos influenciadores, como explica a advogada criminalista Fernanda Ravazzano, presidente da Comissão de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA) e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

São os chamados intermediários: pessoas que não necessariamente são famosas e que atuam trazendo outros indivíduos para o esquema. Cada intermediário ganha um percentual em cima das pessoas que indicou. Esse esquema configura o estelionato. "Perceba como a coisa é elaborada. Tem várias configurações de crimes dentro do tigrinho. Tem até crimes mais graves, como o crime organizado e o de lavagem de dinheiro", pondera.

Atualmente, no Brasil, há duas leis que se relacionam com os cassinos online. Uma é a lei 13.756, de 2018, que regulamentou as "bets" (apostas esportivas), enquanto a outra é a 14.790, regulamentada no início de janeiro. Essa última passou a exigir que as empresas tenham endereço no país.

No jogo do tigrinho e similares, o mais comum é que influenciadores divulguem um vídeo em que estão apostando e ganham alguma quantia alta logo depois. Esse vídeo é uma "demo" - uma demonstração falsa e pré-fabricada para a divulgação.

É possível, ainda, enquadrar como crime contra a economia popular, que está em uma lei de 1951. "É uma lei que precisa ser atualizada, porque a pena é baixa. Vai de seis meses a um ano", acrescenta a advogada.

Por outro lado, as plataformas em que o jogo do tigrinho é divulgado - Instagram, Telegrama, Whatsapp e outras - não são tão facilmente responsabilizadas. Isso porque, como explica Fernanda, a responsabilidade é para pessoa física. Para que os sites fossem para o processo, teria que haver indícios de que as plataformas estão recebendo denúncias quanto às postagens, mas não têm tomado providências.

"Precisamos de uma regulamentação mais bem feita para ter uma fiscalização maior, porque corre tudo muito solto e sem regra. Até o Marco Civil da Internet já está um pouco defasado, porque é de 2014. O Legislativo precisa trabalhar com mais celeridade e o poder Executivo precisa equipar melhor as polícias para as investigações", completa.

Abordagem

A influenciadora Thyza Ferreira chegou a mostrar uma das abordagens que recebeu, há duas semanas. Na mensagem, a representante de uma das plataformas oferece pagamento por divulgação de jogos. Se ela aceitasse a parceria, a cada pessoa que clicasse no link e fizesse um depósito, receberia R$ 15. Além disso, poderia ganhar 40% do valor que cada usuário depositasse e outros 30% sobre as taxas de perda, independente da quantia.

"De alguns meses para cá, estou recebendo muita proposta. Com essa última empresa, o que achei mais absurdo foi dizer que eu ganharia com as perdas. Para mim, isso é algo sem escrúpulos", afirma. Depois que compartilhou os prints em seu perfil no Instagram para quase 90 mil seguidores, Thyza recebeu mais de 50 depoimentos de pessoas contando sobre perdas enormes. Muitas se diziam em depressão ou totalmente desesperadas.

No passado, Thyza chegou a experimentar os joguinhos de cassino. Foi há cerca de dois anos, quando viu amigas influencers divulgando. Na mesma época, começou a perceber que tinha gente ficando milionária em meses - os criadores que mais se engajavam nas publis. "Cada um faz o que quer de sua vida. Assim como alguns influenciadores acham que é correto fazer isso, faz parte do meu papel de influencer mostrar que tem pessoas que ludibriam e ganham em cima de outras".

Para o influenciador Sou o William, a proliferação de criadores que prometem muito com os cassinos online se tornou possível por um contexto maior de desigualdade social e fragilidade emocional. Ele criou, em suas redes, um movimento contrário. Hoje, William dedica boa parte de seu conteúdo a apontar o que chama de "Relevância irrelevante".

"É para falar de toda a irrelevância da influência. Essas pessoas usam de fachadas para divulgar jogos em telas gravadas e os jogos usam até palavras de fé para que os outros se afoguem", explica.

Para William, não se deve culpabilizar as vítimas - no caso, as pessoas que caem no conto dos joguinhos e das apostas online. "É preciso que a população possua a potência, ao invés de dar sua vida e acreditar no que o influenciador diz que é real e que não é. Eles (influenciadores que promovem joguinhos) conseguiram aquilo com enganação e mentira".

William conta que recebe mensagens oferecendo pagamento pela divulgação dos cassinos todos os dias - ainda que seu conteúdo seja crítico a quem faz isso. Nas primeiras linhas, é quase como um texto padrão: "gosto muito do conteúdo, adoraria que você fizesse parte do nosso sistema de jogos". "Você percebe que são robôs, porque não assistem o meu conteúdo".

Doença

Para o cérebro de alguém que joga, os mecanismos presentes no jogo do tigrinho e semelhantes são os mesmos que os de qualquer jogo de azar. São fatores de sedução que levam à dependência, segundo o médico psiquiatra Rodrigo Machado, pesquisador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

A dependência de jogos de azar se assemelha à dependência de substâncias químicas. "O jogo de azar é um comportamento que tem alta capacidade de sequestrar a atenção e a ativação de uma área que processa o prazer no cérebro. Essa área tem, como objetivo principal, reconhecer no ambiente tudo aquilo que pode ser gratificante e prazeroso". Nessa região, a pessoa pode ter um pico rápido e intenso de dopamina, um neurotransmissor. "As pessoas falam que a dopamina é o prazer, mas ela é principalmente o desejo. É a motivação para ir atrás do que faz a gente sentir prazer", acrescenta.

Esses jogos de cassinos online também têm se apresentado com características que realmente vêm do mundo dos games - inclusive, os infantis. Com um perfil mais "gamificável", que está até no fato de serem coloridos e com interface amigável -, acabam atingindo um público mais jovem.

Atualmente, não há dados de prevalência no Brasil sobre o jogo do tigrinho e similares, porque seria necessário fazer estudos epidemiológicos mais recentes. No entanto, um perfil mais jovem já é perceptível nos consultórios. Se antes o mais comum era atender pessoas com mais de 40 anos, agora a idade é cada vez menor.

"Na dependência, muitas modificações ocorrem no cérebro da pessoa. Ninguém tira as memórias das experiências prazerosas que a pessoa teve. Por isso, existe falta de controle quando a dependência se instala e a pessoa precisa se afastar e criar mecanismos para o tratamento", afirma Machado.

Entre as medidas, estão desde o bloqueio de sites de apostas e a busca de grupos de apoio até o acompanhamento multiprofissionais, com psicólogo e psiquiatra. Por vezes, pessoas com dependência em jogo desenvolvem outras condições psiquiátricas, como depressão e transtornos de ansiedade. Nesses casos, é possível associar o tratamento com medicamentos para os demais transtornos. "Existem medicamentos que podem ajudar a diminuir o desejo, mas o tratamento é prioritariamente comportamental", completa o médico.

Em Salvador, um desses grupos são os Jogadores Anônimos, que se reúnem às terças-feiras, às 19h, no Centro Comunitário da Pituba. A irmandade funciona nos mesmos moldes de outras como Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos.

Um dos jogadores anônimos é Everton, que está em abstinência há 15 anos. Ele conta que, depois da pandemia, foi possível perceber o aumento do fluxo de pessoas buscando acolhimento por conta da compulsão por jogos de azar - especialmente, eletrônicos. "Eu tenho uma certa idade e, quando eu jogava, tinha que ir a um lugar físico jogar. Hoje, a casa de apostas está aberta 24 horas por dia, na mão da pessoa. Tudo isso facilita", alerta.

De acordo com eles, muitos são jovens. É comum que digam que a vida está ingovernável, que não conseguem parar de jogar. Na irmandade, eles usam a chamada terapia do espelho, que parte da premissa de que todos são iguais.

"Essa doença é progressiva. Cada dia com ela ativa faz você perder mais e mais. Por isso, a gente fala que sozinho é difícil. Mas a gente aconselha que, primeiro, tem que ser pelo desejo da pessoa. Se a pessoa seguir e levar a sério, pode conseguir se recuperar".

'Como perdi R$ 160 mil com o jogo do tigrinho', diz empresária de 23 anos que fez dívida em seis meses

Ao longo de seis meses, a empresária Vitória Damaceno Bittencourt, 23 anos, contraiu uma dívida de R$ 160 mil no banco por conta do jogo do tigrinho. No dia em que perdeu R$ 50 mil, ela decidiu contar ao marido sobre o que estava vivendo e pediu ajuda. Desde outubro do ano passado, não usa mais nenhuma plataforma de apostas ou cassinos online. Em junho, ela decidiu que usaria suas redes sociais para contar sua história e alertar outras pessoas que poderiam estar passando pela mesma situação.

Correio da Bahia

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